domingo, maio 12

DA

As lembranças se foram. Uma velha fotografia desbotada nada mais significa do que uma velha fotografia desbotada. Foram-se as lembranças. O que ficou foi a certeza de que nada daquilo foi vivido. Certeza mais vívida do que a dúvida da própria realidade, essa, que se sobrepõe depois. Depois de muitas outras fotos que dizem, com sorrisos mais tristes do que mil lágrimas: "lembra-se?"
"Não." É a resposta que vem, quando, raramente, alguma resposta foge, com certa dificuldade. No mais fica a dúvida, o medo, a tristeza...
Dentro do teu cérebro existe um conflito louco. Momentos que dizem as fotos, terem existido, e a ausência deles, que deveriam estar lá, na chapa de uma ressonância funcional, brilhando, brilhando, brilhando. Mas a luz se apagou, e não há mais nada lá, só escuridão.
No meio de pessoas estranhas, perambulando dentro de casa, não acha o casamento, o nascimento do filho. Não acha a esposa e as crianças. São apenas fantasmas que arrastam correntes dentro da sala, da cozinha, dos cômodos e você se pergunta: "O que fazem aqui?" e em resposta, eles choram.
Aqueles meninos que correm ao teu redor são seus netos. E aquele casal que bate a tua porta são os únicos amigos que reconhece. O Catatonismo e a Morte.


É um pesar escrever sobre a fragmentação da vida antes mesmo da chegada da morte.

quinta-feira, fevereiro 7

Dois em Um - A Mitologia guiando o profissional médico



Quem sai do Instituto Central do Hospital das Clínicas de São Paulo, pela porta
principal, depara-se com uma escultura um tanto singular para os nossos dias. Não se
trata de uma cruz, uma estrela de Davi, ou uma lua crescente e estrela. O que
encontramos, na verdade, é um homem clamando aos céus, segurando um bastão
envolto por uma serpente. Trata-se de uma figura mitológica, Asclépio, o deus – ou
semideus – da Medicina. Seu poder representativo é importante para entender as
características mais essenciais, que transcendem o tempo, da medicina como
profissão. Daí, não é por acaso que o encontramos na frente do hospital.
Asclépio nasceu de uma relação entre o deus Apolo; filho de Zeus, representante do
sol, da luz, da música e das artes; com uma mortal. Porém, teve como “mãe” de
criação o Centauro Quíron, criatura ferida, que em decorrência disso adquiriu vasto
conhecimento médico. O “deus” da medicina foi morto por Zeus – deus de todos os
deuses - devido ao pecado de por-se lado a lado com as divindades ao ressuscitar os
mortos usando a prática médica ensinada por Quiron.
Tendo em vista a representatividade do mito, não somente a história em si, é possível
compreender a profissão médica como uma união entre a técnica e o manejo, entre o
competente e o compreensivo, tal qual a união que deu origem ao semideus curador:
Apolo como pai, representando a parte técnica, iluminada, da medicina, e Quiron
como “mãe”, representando a compreensão da efemeridade, o manejo com o doente.
E é nesse aspécto que se encontra a maior dificuldade enfrentada por todos os
médicos durante o exercício profissional: alcançar o equilíbrio entre o conhecimento
teórico-prático e o bom relacionamento com o paciente doente (ou relação médico-
paciente), em outras palavras, saber encontrar a aurea mediocritas entre o médico
Apolo e o médico Quiron.
Como devem proceder, os médicos, por exemplo, no caso de um paciente que faz uso
de um método alternativo de analgesia, sem qualquer referência científica que prove
este efeito, referindo inclusive que tal método, e não o remédio, é o responsável por
sua completa cura? Dado que a doença desse paciente em questão não ultrapassa a
fronteira da dor, isto é, não há qualquer comprometimento sistêmico se não a própria
dor. Seria imprudência médica suspender a medicação até então dada, acreditando,
como o paciente, na medida alternativa? Seria prepotência impor um tratamento sob o
argumento de que há uma sistematização científica que comprove a eficáca da droga
em questão? Remetendo novamente ao mito de Asclépio, torna-se fácil, pelo menos
teoricamente, alcançar a resposta para essa situação. Há que se encontrar os dois
lados da mesma faceta profissional. Ser Apolo e Quiron ao mesmo tempo. Ser o
médico cientista, técnico, clínico e, simultaneamente, ser o médico humanitário,
compreensivo, sensível. Aí está, afinal, o motivo pelo qual encontra-se Asclépios
recebendo os transeuntes do Hospital das Clinicas: lembrar os médicos a serem dois
em um.

terça-feira, maio 1

O Mito da Caverna – Recontado




Estavam todos perdidos. Sabiam do seu destino, deteminado no momento em que se perderam naquela escuridão de morte. Uma ceverna. Caverna sem saída, sem luz, sem esperança. Tudo o que tinham eram eles próprios, um punhado de homens e mulheres que alternavam-se no conjunto e no individual, na micro-socidade criada por um bem comum e no “eu” de cada um, que era, sem dúvida, maior e mais profundo do que qualquer caverna, e, naquele momento, mais perigoso, também.

E era por isso que se mantinham juntos. Todos bem organizados, apesar de melancólicos,  realizavam atividades diversas, para o bem comum.  Alguns menos angústiados que outros, ou menos pessimistas, por assim dizer, tentavam encontrar uma maneira de sair da caverna, de reencontrar o mundo que, há tempo, não mais viam. Nem que uma pequena fresta, um mínimo raio da luz do Sol. Outros, enfiavam-se mais e mais para o fundo da caverna, seja como medida de desespero ao tentar encontrar a saída, seja por morte da esperança, que no final, era apenas o convencimento, a dura realidade, o fim da auto-enganação.
Ainda assim, todos realizavam suas tarefas específicas. Menos os loucos, os que se perderam nas profundezas da própria mente, também. Estes eram motivo de mais uma ocupação, inclusive: os cuidadores. Aqueles que tinham uma certa habilidade em acalmar as angústias insanas daqueles que encontravam-se fora dalí, em locais mais, ou menos, aterrorizantes.

Num certo momento encontrou-se sentado no chão. Ou seria o teto, isso aqui? Não havia mais certeza de nada. Todos os anos de estudo não lhe adiantavam nem para saber se estava sentado no teto ou no chão, se encostava a mão na parede ou na porta, se era caverna ou era nada. Ou seria aquilo, tudo? Sentiu medo, e parou. Sabia que a insanidade poderia bater-lhe à porta. Ou estaria já batendo? Receberia-a, sem dúvida. É inevitável abrir a porta para a insanidade, quando ela quer entrar. Não depende de mim.
Não sabia há quanto tempo não trabalhava. Sabia apenas que não cumpria seus afazeres. Tavlez um descanso, cinco minutos. Ou tinham se passado dias sem exercer seu ofício? Qual era mesmo? Parou.
Talvez sentia-se confrtável com aquilo tudo. Apesar de não ver, sabia que estavam todos lá, fazendo o que tinham que fazer. E se se tornasse louco, cuidariam dele. Até a morte, já que a esperança, para ser sincero, não existia mais em seu coração. Enfiava-se mais e mais para o fundo de sua mente e pensava.

Uma voz soou e ele, estranhamente, não a reconheceu. Havia, com certeza (certeza?), um punhado de gente lá dentro, e ele conhecia (conhecia?) todas as vozes desse punhado de gente.
“Quem é?” Perguntou.
“Oi, sou eu! Não se lembra de mim, cara?”
“Não. Não me lembro de você, ou, da sua voz. Me desculpe.” Respondeu, achando que havia se enganado de alguma forma. Convenceu-se de que sua impressão era menos real, ou menos confiável, que o próprio dono da voz.”Se essa pessoa disse que eu deveria me lembrar dela, pois então eu deveria. São só impressões...” Pensou, e interrompeu o pensamento.
Veio o espanto. Repentinamente lembrou-se da voz, e de seu dono. Era um antigo amigo. Sim, tinha certeza disso. E também tinha certeza de que ele não fazia parte do punhado de gente que tinha se perdido na caverna.
“Ora, se não é você! Me lembrei, sim.” Ficou feliz, e melancólico quase que instantâneamente:
“É uma pena, você também se perdeu aqui. Eu não sabia. Diga, como foi?”
“Você enlouqueceu, cara? Eu não me perdi! Só estou de passagem. É obvio que eu sei como voltar.” E dizendo isso, ria do absurdo dito pelo antigo amigo.
“Pois então me conte! Estamos todos presos aqui! Mostre o caminho de volta!” Disse, com a alma cheia de esperança.

E assim, seguiu os passos do salvador. Andaram pela caverna por alguns minutos, e ele então teve clareza do tempo transcorrido. Estranhou:  Achava que o caminho para fora seria árduo, demorado.  Foi tudo muito fácil. Era uma rocha que parecia uma porta, teve certeza de que era uma porta.

Admirou-se: Uma estrada! Uma estrada! A claridade, não tão intensa, uma vez que chovia. Mas iluminava! Iluminava e mostrava as coisas para ele! Tinha certeza absoluta de que era uma estrada, com árvores, e asfalto. Era uma rodovia! A cidade não deveria estar longe! Estou salvo!
Tinha que avisar os outros. Tinha que mostrar o caminho que levava ao mundo, à verdade.

Voltou para a caverna aos berros: “CONSEGUI! O CAMINHO PARA FORA! EU ESTIVE LÁ! VAMOS, VAMOS! “
Ninguém deu ouvidos. Foi plenamente ignorado.
“Ora, vamos. Eu sei o modo de sair. Não é tão difícil. É bem fácil, na verdade.”
Ninguém.
“Pois bem, então! Fiquem aí! O conforto da certeza tomou conta de vocês, não é? Estão todos descrentes, enfiados no fundo da caverna, com medo de sair! Fiquem ai, vocês, confortáveis em tentar descobrir uma forma de conhecer essa verdade! Fiquem ai, vocês, confortáveis com a certeza da morte! Eu achei a saída, descobri a verdade! Eu sou lúcido, e vocês são loucos! Eu estou vivo, e vocês já morreram!”

E saiu.

Passou por entre as árvores e chegou na estrada. Não tinha percebido antes, mas agora não via nenhum carro passando pela rodovia, e a chuva caia mais forte.
Andou. Andou e sentiu frio por causa da chuva que caia cada vez mais forte. Mais do que frio, sentia solidão. Solidão que não sentia na caverna.
“É desconfortável, mas é o mundo! Não é mais a caverna. Esse é o mundo real, é a verdade!” Convenceu-se
“Eu hei de chegar à cidade, encontrar as pessoas lúcidas e vivas, como eu.”
Então uma dúvida surgiu em sua mente. E uma tristeza atravessou-lhe o peito: e se não existe nenhuma estrada? E se, de fato, não havia nenhuma saída, nenhuma verdade? E se a verdade era a caverna, e só a caverna? E se foi tudo uma ilusão?
Eu enlouqueci?
Então a estrada se desfez, e num piscar de olhos, estava ele na escuridão da caverna. Agora sozinho, louco, enfiado mais e mais no fundo da caverna.

terça-feira, abril 5

Que seja doce!

Este blog está necesitado de um toque mais suave, eis um post sem grandes indagações, mas para alguns complexo.



          Amamos quando chegamos ao extremo, quando sentimos o extremo. Não falo de maneiras de amar, mas falo de amor. Sempre amamos algo que nos leva ao extremo, não precisa ser o extremo de sentir aquela adrenalina, matar por amor e essas baboseiras.

          O extremo pode ser simplesmente estarmos sentados no sofá ao lado de alguém especial. Tem aqueles que amam um dia, outros que amam um objeto, há quem ame alguém e também quem ame um emprego.

          Não é necessário sofrer para amar, e nem ser feliz por amar. Muitas vezes só percebemos que amamos alguém em uma situação extrema (olha essa palavra ai novamente), uma situação em que sentimos que estamos prestes a perder alguém. Pois é nessas horas em que entramos em contato com um sentimento mais profundo, aquele que só existe em cada um de nós, por isso amamos diferente.

          Tem aqueles que mostram para todos, tem outros que amam em segredo. Tem os que amam em forma de poemas, outros amam em melodia. Muitos amam uma lembrança, poucos amam no presente. Eu gosto das pessoas que não querem amar, pois essas quando amam, amam de verdade.

          Como eu já disse amar é um extremo, é o máximo, o topo de um sentimento. Eu não sei como você ama, não sei quem você ama, não sei o que você ama, só sei que um dia já amou.

sábado, março 26

Sobre psicanálise e subjetividade

O que significa ser mentalmente saudável ? Como atingir a saúde mental ? Essas perguntas são inviáveis em se tratando de psicanálise, pois, sendo a cura um objetivo, ela não pode ser plenamente alcançada em sessões psicanalíticas. Em outras palavras, a psicanálise não procura sanar qualquer “doença” que acometa a psiquê do homem. Não há um objetivo certo para essa atividade, nem tampouco um método perfeito para se analisar uma pessoa. Daí o fato de serem poucos os analisandos que recebem “auta” de seu psicanalista. Assim sendo, a psicanálise está longe de ser considerada uma atividade objetiva, científica. Esta é, sim, marcada pela subjetividade, subjetividade que é uma característica essencialmente humana.
O próprio pai da psicanálise pode ser considerado um exemplo dessa subjetividade que marca as sessões. Sigmund Freud, médico, cientista das ciências neurológicas que era, decidiu acompanhar os problemas mentais (que até então eram as loucuras passiveis de internação) por uma outra perspectiva. Saiu dos laboratórios para o contato humano, em encontros de puro diálogo, na esperança de estudar e entender o que se passava com esses mente carpos. Através da hipnose, Freud constatou que a loucura é causada por problemas psicológicos, não orgânicos, como se acreditava até então. Por isso decidiu largar a objetividade do laboratório e entrar na subjetividade do diálogo.
A partir dessa escolha, Freud propôs um método para o tratamento de problemas psicológicos, como a famosa histeria. Dividiu a psiquê humana em Id, Ego e Superego e estava especialmente interessado nas relações entre essas 3 unidades. Ora, essa análise critica sobre o consciente e inconsciente indica que apesar da subjetividade, a psicanálise não deixa de ser uma atividade racional, com uma lógica perfeitamente aceitável.
O filme “Cisne Negro” de Darren Aronofsky, lançado em 2010 exemplifica essa relação entre psicanálise e subjetividade. Apesar de não haver qualquer citação sobre uma sessão analítica, o filme expõe o psicológico de uma dançarina de balé, que sofre de diversos problemas referidos por Freud. O mais chamativo é a repressão da pulsão sexual sentida pela protagonista por seu mestre. Análises à parte, uma questão pertinente sobre esse drama psicológico pode ser feita: haveria cura para Nina (protagonista) se ela fizesse sessões psicanalíticas periódicas ? Ela estaria completamente livre de suas neuroses se visitasse um psicólogo, ou psiquiatra ? Provavelmente não, já que sua mente é pressionada por todos os lados. Mas isso não quer dizer que a análise não melhoraria sua qualidade de vida com o passar dos tempos, na medida em que ela entenderia um pouco mais de si mesma e de suas limitações.
Outra obra de excelente qualidade, que demonstra a subjetividade na psicanálise, é o livro “O Alienista” de Machado de Assis. Nela, o médico Simão Bacamarte, procura, assim como Freud, entender todas as “moléstias mentais“ e desenvolver um método para cura-las. Porém o “psiquiatra” se entrega a uma objetividade incompatível com a atividade psicanalítica. O resultado disso é a internação de toda a cidade no hospício construído pelo próprio médico.
Entende-se, então, a presença da subjetividade na psicanálise e até a necessidade dela para o entendimento do analisando como um ser humano. Não há curas, não há certezas, o que há na psiquê do homem é somente fantasia, e é com essa fantasia que o psicanalista deve trabalhar para garantir que o analisando não sofra com suas “loucuras”, tão humanas.

domingo, março 13

Black Swan

Inicio, a partir desse post, uma série de considerações sobre o filme "Cisne Negro", cada uma em um post novo.
Será uma série de comentários para destrinchar o filme que, na minha opinião, é de excelente qualidade. Recomendo vivamente que os leitores do blog assistam ao filme, já que alguns tópicos serão discutidos com base nas cenas mais interessantes da obra, e depois expandidos de maneira crítica, como sempre fazemos aqui na Tabacaria.
Esse primeiro post estará aberto para o diálogo.
Quais tópicos os senhores/senhoras acham que se destacam no filme ? (ex. psicologia, alienação, estética, etc.)
Como o filme atinge as pessoas que assintem a ele ?
Vamos fazer uma primeira análise sobre o "Black Swan" e depois podemos todos nos aprofundar nas questões citadas. Para isso será necessária a participação de todos os leitores, inclusive aqueles que ainda não deram sua posição aqui na Tabacaria.



Tenham um bom filme.

sábado, fevereiro 5

Uma tragédia

Humildes desculpas de uma pessoa ocupadíssima

                                                                             ***

 Recomeço o ano de 2011 abordando um tema mais sociológico do que filosófico. Detesto ter que ficar ruminando um assunto passado, mas tenho que me expressar sobre o desastre na região serrana do Rio de Janeiro.
Outro dia, já passada toda a euforia da mídia em relação ao assunto, ouvi que já são 872 mortes confirmadas, além dos 400 e pouco desaparecidos. Mais um problema: os sobreviventes estão vivendo em situações precárias nos abrigos coletivos, quase que em cortiços improvisados com tapumes de madeira...
Ora, essa região é afetada por desastres semelhantes praticamente todo ano. Mas o fato é tratado como novo a cada ano que passa. Como eu sei disso? Por dois motivos: porque eu me lembro (e você também se lembra) que Angra dos Reis sofreu o mesmo problema com os deslizamentos de terra nessa mesma época do ano passado, e porque eu fiz o vestibular da Unicamp 2011.
Pelo vestibular tive contato com uma crônica de Carlos Drummond de Andrade, em que ele explicita o problema das chuvas no Rio, e denuncia a verdadeira causa do problema. Se desconsiderada a data do texto, a localidade específica da tragédia, e aceitando o absudo de que o autor ainda estaria vivo em 2011, pode-se ler a crônica como uma produção atual, realizada perante o espanto e a raiva sentida por ele nos momentos da tragédia.
É importante saber que o documento data de 1966, com os mesmos problemas que presenciamos ainda hoje. Sem mais delongas, dou voz ao poeta:

"   Amanheceu um dia sem luz – mais um – e há um grande silêncio na rua. Chego à janela e não vejo as figuras habituais dos primeiros trabalhadores. A cidade, ensopada de chuva, parece que desistiu de viver. Só a chuva mantém constante seu movimento entre monótono e nervoso. É hora de escrever, e não sinto a menor vontade de fazê-lo. Não que falte assunto. O assunto aí está, molhando, ensopando os morros, as casas, as pistas, as pessoas, a alma de todos nós. Barracos que se desmancham como armações de baralho e, por baixo de seus restos, mortos, mortos, mortos. Sobreviventes mariscando na lama, à pesquisa de mortos e de pobres objetos amassados. Depósito de gente no chão das escolas, e toda essa gente precisando de colchão, roupa de corpo, comida, medicamento. O calhau solto que fez parar a adutora. Ruas que deixam de ser ruas, porque não dão mais passagem. Carros submersos, aviões e ônibus interestaduais paralisados, corrida a mercearias e supermercados como em dia de revolução. O desabamento que acaba de acontecer e os desabamentos programados para daqui a poucos instantes.
     Este, o Rio que tenho diante dos olhos, e, se não saio à rua, nem por isso a imagem é menos ostensiva, pois a televisão traz para dentro de casa a variada pungência de seus horrores.
Sim, é admirável o esforço de todo mundo para enfrentar a calamidade e socorrer as vítimas, esforço que chega a ser perturbador pelo excesso de devotamento desprovido de técnica. Mas se não fosse essa mobilização espontânea do povo, determinada pelo sentimento humano, à revelia do governo incitando-o à ação, que seria desta cidade, tão rica de galas e bens supérfluos, e tão miserável em sua infraestrutura de submoradia, de subalimentação e de condições primitivas de trabalho? Mobilização que de certo modo supre o eterno despreparo, a clássica desarrumação das agências oficiais, fazendo surgir de improviso, entre a dor, o espanto e a surpresa, uma corrente de afeto solidário, participante, que procura abarcar todos os flagelados.
     Chuva e remorso juntam-se nestas horas de pesadelo, a chuva matando e destruindo por um lado, e, por outro, denunciando velhos erros sociais e omissões urbanísticas; e remorso, por que escondê-lo? Pois deve existir um sentimento geral de culpa diante de cidade tão desprotegida de armadura assistencial, tão vazia de meios de defesa da existência humana, que temos o dever de implantar e entretanto não implantamos, enquanto a chuva cai e o bueiro entope e o rio enche e o barraco desaba e a morte se instala, abatendo-se de preferência sobre a mão de obra que dorme nos morros sob a ameaça contínua da natureza; a mão de obra de hoje, esses trabalhadores entregues a si mesmos, e suas crianças que nem tiveram tempo de
crescer para cumprimento de um destino anônimo.
     No dia escuro, de más notícias esvoaçando, com a esperança de milhões de seres posta num raio de sol que teima em não romper, não há alegria para a crônica, nem lhe resta outro sentido senão o triste registro da fragilidade imensa da rica, poderosa e martirizada cidade do Rio de Janeiro."
Carlos Drummond de Andrade, Correio da Manhã, 14/01/1966.

Chamo a atenção para o 3° parágrafo, em que Drummond diz que a chuva denuncia "velhos erros sociais e omissões urbanísticas". A conclusão sobre quem, de fato, é culpado pelas 872 mortes ocorridas no início de 2011, eu deixo que os senhores a tirem.